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Coluna Afetologia Odebateon

Não ter tempo de sentir… E ela não tinha tempo de sentir… Atendendo uma pessoa após a outra, ela atendia seus pacientes a cada dez minutos. A sua chefia dizia: “é preciso produzir mais e mais…”. Ela percebeu que a cada dez minutos se deparava com vidas tão complexas, com tantas situações… Mas o tempo destinado a cada pessoa era tão pequeno. Seu coração começava a palpitar quando percebia que só faltavam dois minutos e era preciso ir se despedindo da pessoa à sua frente. Uma fila enorme esperava do lado de fora. Ela percebia que a pessoa diante dela queria falar mais. Mas o tempo destinado era o de dez minutos para cada pessoa.

E assim ela se viciou em atender a cada dez minutos. Ela nem precisava mais de relógio para marcar o tempo do atendimento. O tempo não era para sentir, mas, sim, era o tempo de produzir. Do seu vício de atender cada pessoa a cada dez minutos ela percebeu que o tempo em casa também tinha mudado. A atenção que antes era maior para os filhos já não era tanta… O tempo da produção começara a ser deslocado para outras situações da sua vida. Ela percebeu que desaprendera a sentir… O contato com as pessoas tornara-se frio e sem emoção.

Um dia seu filho lhe pediu atenção, mas ela estava fazendo seus relatórios do trabalho. Ela leva sempre o trabalho para casa… De forma ríspida responde ao filho: “agora eu não tenho tempo… depois eu vejo isso com você”. O marido de longe percebe a cena e acolhe o filho. A relação com seu marido já foi tão boa, mas trabalhar fora, dar conta de casa e ainda ter que atender uma fila imensa de pacientes no trabalho foi desgastando a relação. A paixão que antes era imensa se transformou numa outra coisa qualquer e ela nem mesmo sabe explicar. “Já nem sei o que sinto por meu marido…”. Sentir já não era mais uma qualidade tão dela. O vício em marcar a vida num tempo tão cronometrado passou a ser a sua forma tão natural de ser.

Outro dia de trabalho. Em meio aos seus prontuários ela solicita uma outra paciente para entrar. A pessoa senta na cadeira a frente dela. Ela olha para o computador com todas as anotações da paciente, olhando também para o prontuário. A paciente pergunta: “você é feliz trabalhando da maneira que você trabalha?”. Ela meio atônita com a pergunta fica em silêncio, meio sem saber o que falar. A paciente continua: “você sempre atende olhando para papéis, para a tela do computador… você não olha pra mim…”. Ela pede desculpas, dando uma série de justificativas, fala sobre o tempo de atendimento que é limitado e outras coisas burocráticas. A paciente lhe diz: “que bom… pela primeira vez você olha pra mim e tenta sentir o que estou falando…”.

Elas se despedem e uma outra pessoa é chamada a entrar na sala. Ela rapidamente fecha o seu computador e tenta criar um outro caminho para receber a próxima pessoa. “Bom dia”, ela diz de forma expansiva. A paciente olhou meio estranho para ela e pergunta: “está tudo bem com a senhora doutora?!”. Ela pergunta porque e a paciente responde: “sei lá… a senhora está diferente de antes…”. Ela percebe que é possível fazer diferente com tão pouco… É possível transformar uma paisagem, um ambiente com tão pouco…

O dia de trabalho chega ao fim. Ela chega em casa e a primeira coisa que faz é dar tempo ao tempo. Ela vai tomar um banho demorado e sentir a água descer pela nuca. Coisa que ela não faz há tanto tempo. Fazer as coisas de forma mecânica foi a forma encontrada para dar conta de tantas coisas. Desaprender a sentir é o método que precisou aprender para estar neste mundo da produção, da competitividade, do reconhecimento pelas metas cumpridas.

No entanto, o prejuízo afetivo vai se acumulando de pouco a pouco. Filho, marido, pessoas que ela atendia de forma padronizada, tudo isso fazendo da sua vida uma vida de isopor.
Ela descobriu que a vida pode ser vivida de outras maneiras. Ela já sabia disso… mas esquecera. Agora é uma questão de sentir mais uma vez os encontros, se sentir parte deles e não deixar de viver o tempo de sentir as coisas, as pessoas, o mundo à sua volta, as coisas simples da vida.

Abraço

Paulo de Tarso