Nessa Era Moderna do Mundo, de uma verdade não podemos escapar: “cada vez mais a humanidade vem desafiando os limites seguros dos sistemas naturais”.1

Agora, dois séculos e meio depois da Primeira Revolução Industrial, mesmo diante de avanços tecnológicos, o que mais vemos em nosso horizonte próximo é a possibilidade de colapso da civilização moderna.

No plano geral, pode-se dizer que, depois de manipularmos violentamente a natureza (antropocentrismo dominador) para erguer a ideia de progresso que ainda hoje é dominante, mais da metade da humanidade vem arcando com os custos de um planeta combalido, social e ambientalmente falando.

Diante de tudo o que se sabe agora, a realidade, aqui ou acolá, é bastante complexa, traumática e deprimente. No mundo político de hoje, ao que parece, a preocupação pelo desastre climático há muito se tornou tão meramente uma questão de discurso vazio, mero jogo de palavras, longe assim de ações e correções propriamente ditas. Da mesma forma, a visão empresarial ainda é míope em relação à sustentabilidade. Poucos querem, de fato, mudar a condução dos negócios. Em geral, fala-se o que não se faz. O preço a pagar por isso, como é fácil presumir, é alto.

Num tempo que parece estar se esgotando, e isso não é pouco, a ciência demonstra com muita clareza para onde a sociedade humana está indo. A partir daí, convém continuar dizendo que estamos vivendo num tempo de mudanças climáticas acentuadas, já considerado um desafio universal. Enquanto os interesses de sustentabilidade ambiental são vergonhosamente minados pelas elites de poder (vide a influência da poderosa indústria dos combustíveis fósseis), torna-se ainda mais preocupante a avassaladora perda de biodiversidade, o nível de degradação do meio ambiente, e os níveis indecentes de desigualdade social.

Na cultura do capital (quer dizer, obter lucro com tudo), para atender demandas humanas, os recursos da natureza são continuadamente superexplorados. Assim, a loucura consumista, condição central da racionalidade econômica, é de tamanha ordem que o mundo moderno, hoje mesmo, precisa de mais de uma Terra.

À luz de fortes evidências, isso quer dizer sobretudo que a opulência vem misturada com os mais variados impactos ambientais (uso inadequado de água, terra, biomas, fluxos de energia e matérias-primas), e cada vez mais, para piorar a situação, empurra para bem longe a possibilidade de equilíbrio da vida no planeta.

Problema permanente, na margem disso tudo, os danos ao planeta, seja especificamente do ponto de vista ambiental ou social, vão se combinando com determinadas transformações em níveis irreversíveis, tornando ainda mais difíceis estratégias para salvaguardar o ambiente.

Como se sabe, esses danos envolvem questões fundamentais, a saber: dos termos de conservação planetária ao excesso de dejeto resultante do processo de produção; da perda de diversidade biológica à gestão ineficiente da água; da mudança no uso da terra à dificuldade de se alcançar valores máximos do projeto civilizatório como a justiça social (base da paz), a justiça climática e ambiental (base da sustentabilidade), e a justiça econômica (base do bom desenvolvimento).

Olhando para o futuro, nesse mundo atual onde a carência social nunca foi prioridade, e tampouco é acidental, nada menos que 26% da população global não tem acesso à água potável; 46% desconhecem os serviços de saneamento seguros, e mais de 10% da população mundial passa fome devido aos choques climáticos.

À luz dos paradigmas dominantes, hoje sabemos que “40% da população mundial ainda usa lenha como principal combustível”2. De resto, em meio a uma época moderna de grande instabilidade ecológica, com o inevitável esgotamento de recursos naturais via exploração predatória que nos aproxima de vez dos limites da biosfera, não soa exagero dizer que somos moralmente condenados por uma economia predatória e antiecológica que se coloca acima da natureza, por isso a ocorrência generalizada de severos impactos ambientais.

Verdade choque de realidade, é forçoso admitir pontualmente que falhamos – e muito – não só na tarefa de conservar os ambientes naturais e as formas de vida encontradas na Terra, mas também diante da estrutura social conhecida e determinada. É bastante falha nossa percepção do mundo. Assim, no conjunto de imposições e interesses econômicos estabelecidos, quer queiramos ou não, pouco importa se as muitas fraturas sociais e ambientais (fome, desemprego, conflitos armados, falta de saneamento básico, péssimas condições do clima, dificuldade de manter a biodiversidade e assim por diante) continuam se multiplicando nesses tempos atuais.

Perceptivelmente, pouco importa se, de fato, a produção, o consumo e a distribuição sejam, a rigor, as causas do esgotamento dos recursos naturais. Nesse mesmo sentido, não importa apontar como um dos grandes culpados pelo aquecimento global a indústria da pecuária e o consumo de carne (responsável por grande impacto ambiental).

Em linhas gerais, não importa saber se a indústria da carne consome e polui o sistema de águas ou que essa mesma indústria, na base e no todo, exige a derrubada de florestas e matas para abrigar novos pastos (não raras vezes em imensas áreas).

Triste constatação, parece que vale mais ignorar a realidade social e econômica dos muitos desfavorecidos, ignorando, por conseguinte, a destruição dos meios de subsistência. Portanto, longe de se pensar com mais seriedade em instrumentos capazes de combater as ameaças ambientais (a bomba que está no colo do planeta), o que mais importa, olhando a tendência de reprodução da dinâmica capitalista, é produzir mais e mais, ainda que seja para poucos apenas.

Agora mesmo, no mundo natural no qual todos estamos inseridos, com capacidade de produzir comida suficiente para o conjunto humano (foram mais de 2,78 bilhões de toneladas de grãos, em 2022), quase 2,5 bilhões de pessoas, especialmente em diversas partes do Sul Global (onde reside 79% da população do mundo), têm dificuldade em se alimentar corretamente. Para não simplificar, a Oxfam estima 11 mortes por minuto no mundo devido às consequências da fome.

Há muito sabemos que mais de três milhões de adultos morrem todos os anos em consequência da fome. Com efeito, ainda hoje mesmo, mais de 1 bilhão de pessoas vivem em favelas em todo mundo3; mais de 2,5 bilhões de pessoas não têm acesso à água potável4; mais de 4,2 bilhões de pessoas vivem sem acesso a saneamento básico.5

Dessa notada perspectiva, não é difícil imaginar que “a sorte da humanidade está ligada à integridade de seu meio de vida”.6

Ocorre que, num mundo de extremos e contradições, e em meio aos fortes impactos globais causados por um modelo predatório impositivo, a verdade é uma só: com ou sem tecnologia, faz tempo que fomos atropelados por um capitalismo de colapso – isto é, essa “força” produtora de todos os tipos de perturbações planetárias.

A inaceitável realidade social nossa de cada dia

Enfatizando o óbvio, a realidade social brasileira – um cenário bastante desalentador, especialmente para os jovens – não está distante desse quadro acima exposto. Vale começar lembrando que, apenas entre 2020 e 2021, 11,7 milhões de brasileiros e brasileiras entraram em situação de pobreza – considerando as dimensões absoluta e relativa. Durante a pandemia de covid-19, a pobreza social no Brasil bateu recorde: 64,6 milhões de pessoas, em 2021.

Agora, em tempos recentes, o Observatório das Desigualdades mostra bem, de um lado, que mais de 7,5 milhões de brasileiros vivem com menos de R$ 150 por mês. Do outro, o rendimento médio mensal per capita dos 10% mais ricos é [estupidamente, grifo nosso] 14,4 vezes maior do que os 40% mais pobres (dados de agosto de 2023). Atualmente, 0,01% compõem a população mais rica do Brasil, possuem fortuna acumulada, e livre de dívidas de R$ 151 milhões em média.7

Tão perverso quanto, por aqui, como todos sabem, quem ganha menos paga mais impostos. “Os 10% mais pobres pagam 26,4% da sua renda em tributos, enquanto os 10% mais ricos apenas 19,2%”, conforme consta no mesmo estudo citado (Nota 7).

Nesse momento delicado, Achim Steiner, chefe do Pnud, ponderou bem que “a desigualdade social” (que afeta diretamente a estabilidade financeira, política e assim por diante e desde há muito é um grande desafio para a sociedade em geral) “e o clima” (falta de sustentabilidade) “são crises que ameaçam economia e coesão social”, e deixam, por certo, cicatrizes irreversíveis.

Na base disso tudo, e não é segredo algum, será demasiado esperar daqueles que tem o poder de mando; ainda assim, fica a certeza de que, se a transição ecológica (e queremos deixar bem claro aqui que isso implica, antes, na necessidade de se construir uma cultura ecológica) não for empreendida em tempo hábil, menor será a capacidade do país de proteger os mais vulneráveis, e mais difícil será erguer de vez um Brasil mais justo e solidário; um País melhor para as gerações futuras, social e ambientalmente falando.

Gilberto Natalini é médico-cirurgião, vereador por cinco mandatos na Câmara Municipal de São Paulo. Foi secretário municipal do Verde e do Meio Ambiente (2017) e candidato a governador do Estado de São Paulo pelo Partido Verde, em 2014. Ocupou o cargo de secretário do Clima da cidade de São Paulo.

Marcus Eduardo de Oliveira é economista, professor e ativista ambiental. Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Civilização em desajuste com os limites planetários (CRV, 2018), entre outros.

Por Orbis News