Sulivã Bispo e Thiago Almasy interpretam os personagem principais da série Na Rédea Curta. FOTO BOCCIA PHOTO
Sulivã Bispo e Thiago Almasy interpretam os personagem principais da série Na Rédea Curta. FOTO BOCCIA PHOTO

Canais na Rédea Curta e Deu M estão entre os contemplados pelo Fundo Vozes Negras do YouTube

Celeiro de talentos e potências artísticas, as periferias do Brasil também revelam realidades diferentes daquelas que se costumam ver nas primeiras páginas dos jornais: desigualdades que culminam em tragédias. Construindo narrativas positivas que falam de si e põem os seus iguais em destaque, diferentes grupos usam a internet para alcançar outras milhares de pessoas com representatividade negra através do humor, cultura pop e outros temas.

De Salvador, na Bahia, a dupla de amigos e atores Sulivã Bispo e Thiago Almasy se uniu para retratar de forma bem-humorada o cotidiano de uma mãe e seu filho na periferia da cidade. Na Rédea Curta, canal criado desde 2018, Mainha e Junior investem no humor de identificação e oferecem um olhar alternativo ao recorte de sofrimento e falta de oportunidade tão associado aos moradores de bairros periféricos.“Quando eu e Thiago decidimos trazer nossas verdades para a websérie, contando a história das nossas mainhas, trouxemos para as telas um humor de identificação, tendo como pano de fundo a ideia de valorizar nossas narrativas e a periferia de Salvador, que é a cidade mais preta fora da África. Os episódios podem ser assistidos por toda a família e os personagens não são absurdos. Se por vezes parecem ser, é porque as mães têm horas que realmente são absurdas”, diverte-se Sulivã, que vive o papel de Mainha, a genitora linha dura e absurda de Junior, o filho meio birrento e acomodado, interpretado por Thiago.

O dia a dia agitado e barulhento entre os dois costura uma relação de afeto entre uma mãe solo e seu filho. Para Thiago, diretor e roteirista da produção audiovisual, um dos objetivos é fazer com que inúmeras relações da vida real entre outras mainhas e juniors sejam naturalizadas e representadas com carinho nas telas. “Queremos entregar um olhar sobre a periferia que torne aquelas relações, aquelas pessoas e aquelas famílias dignas de complexidade, mostrando que essa coletividade é feliz e consegue atravessar as adversidades com vínculo e com afeto. Nosso objetivo é que os moradores da periferia se olhem e se sintam naturalizados”, comenta Almasy.

Canal Deu M é formado por um coletivo de jovens negros do Rio de Janeiro. Foto Divulgação.

Da Zona Norte carioca, o Canal Deu M é feito por um coletivo de jovens negros que buscam representar, através de filmes e séries produzidos por eles mesmos, as vivências de tantos outros jovens brasileiros. Criado desde 2015 pelo ator Victor Marinho, o canal já passou por diferentes fases e, atualmente, foca em produções mais robustas que naturalizam o afeto entre pessoas LGBTs. “Nossas produções nasceram da falta que a gente sentia em ser representado, além de mesmo fazendo teatro, não termos a oportunidade para interpretar determinados personagens de destaque. Então, a gente se deu essa oportunidade de nos colocarmos nesse lugar de protagonismo com as histórias que criamos com o nosso olhar”, explica Victor. Além dele, o Deu M é o resultado das ideias da Sara Chagas, Mateus Scalabrini e Carlos Matheus. O coletivo não para por aí e conta com outros jovens atores que variam de acordo com a produção.

A intenção do grupo é quebrar o lugar comum em que os atores negros são postos para representar “somente o filho da empregada”. Victor defende a pluralidade de histórias que são possíveis de serem vividas pelo elenco do canal. “Não é sobre querer viver personagens ricos que são ainda muito distantes da nossa realidade. A ideia é mostrar dentro da favela pessoas com histórias diferentes. Nem todo mundo enfrenta uma dificuldade ao ponto de passar fome. A galera ainda tem uma visão da favela muito estereotipada nesse sentido”.

Educação para poder ver além

Os episódios da websérie Na Rédea Curta têm como pano de fundo os dilemas de Mainha diante dos desafios de educar seu filho único, Junior, um jovem iniciando a vida adulta que sempre é flagrado pela mãe aprontando e desobedecendo suas ordens. “Direta ou indiretamente, a gente fala da solidão da mulher negra, do medo que mainhas sentem quando os filhos não voltam logo para casa. A gente fala do receio de uma mãe com a educação de um filho e tá falando de violência também”, reflete Sulivã, que assina todo o figurino da nova temporada do canal. Por meio do que define o ator como “humor conscientizado”, as estórias reverberam mensagens importantes sobre o papel da educação na transformação social.

Conscientes de suas responsabilidades sociais enquanto profissionais da arte, Thiago e Sulivã reforçam que construir esses personagens – Mainha é uma professora formada em magistério – cumpre essa função de defender a educação como o caminho para que as pessoas tornem possível o que desejam. “Quando você tem uma boa educação de base, você consegue ser qualquer coisa que você quer ser, mesmo tendo racismo e você precisando brigar 10 vezes mais. A educação é o único viés revolucionário que diz ‘não, você pode, você consegue’”, defende Sulivã, reforçando a importância de uma postura antirracista diante da desafiadora e desestruturante vida na periferia. “Ali as pessoas estão fadadas a um destino meio que pré-programado. São pouquíssimas as que conseguem cruzar as fronteiras da periferia. A educação tem o poder de fomentar sonhos e construir outras realidades. A gente acredita que pode confabular outros caminhos possíveis”, completa Thiago.

Para Victor, do Deu M, por mais que a educação não seja uma pauta direta nas produções do grupo, nas entrelinhas, a discussão é essencial para que cada ator entenda a sua essência e papel transformador no mundo. “você entende como funciona tudo o que o racismo produz, você começa a aprender a burlar esse sistema. Você passa enxergar melhor o lugar em que está, aprende a lidar com ele e como mudar sua realidade”, explica.

Reconhecimento do YouTube

Na pandemia, os dois canais passaram por dificuldade para seguir com suas produções. Em 2022, no entanto, essa realidade pode ser mudada com investimentos do Fundo Vozes Negras do YouTube. Os dois projetos estão entre 35 canais brasileiros que passaram a receber recursos e capacitação da plataforma mundial para investirem na produção de conteúdo. Em todo mundo, apenas 135 canais foram selecionados pelo YouTube.

“Iniciativas de apoio como essa são capazes de mudar o rumo da história de jovens da periferia como nós, oferecendo a possibilidade de revelar nossos talentos e chegar muito mais longe, uma vez que, infelizmente, a falta de perspectiva ainda é uma realidade presente. No nosso caso, o Fundo Vozes Negras vem em um momento de extrema importância para o canal, porque depois de ficar dois anos parados por conta da pandemia, tivemos que parar para analisar se seria possível continuar gravando esses vídeos e contando nossas histórias”, realça Thiago.

A repercussão na vida dos atores é ainda maior. O YouTube está oferecendo um ano inteiro de suporte. Aulas de mentoria, desde como analisar dados e frequência de conteúdo até entender sobre recebimento de valores pelo AdSense, planejamento e gestão financeira, YouTube Analytics, e aulas de produção, captação, iluminação e edição fazem parte dos conteúdos que estão sendo ministrados. “É um pacote de encontros voltado para que nós criadores consigamos olhar para nossos números e nossos conteúdos a partir de uma visão mais sofisticada. Até sessão de yoga vamos ter, para relaxar e desacelerar um pouco. É um cuidado que vai além da dimensão técnica, abraçando cada um como pessoa”, comemora Thiago.

Para o canal Deu M, que antes já tinha uma produção mais frenética de conteúdos, o apoio é como uma confirmação do seu propósito. “Chegou para poder somar real e fora o aprendizado que vai ser repassado. Nós do canal estamos muito felizes e com certeza mais portas irão se abrir a partir disso. Chegou como alguém dizendo: ‘ei, não desiste, a gente acredita em vocês’”, finaliza Victor do Deu M.