Com planejamento e seguindo um protocolo de indução acompanhado por obstetra e consultora de lactação, é possível conseguir amamentar mesmo sem ter gestado o bebê

Logo após o seu casamento, em 2017, a escritora Marcela Tiboni, 41 anos, e sua esposa, a consultora imobiliária Melanie Graille, 34, começaram o processo de fertilização in vitro. Já na primeira tentativa, que aconteceu em janeiro de 2018, tiveram sucesso e mais: eram gêmeos, um menino e uma menina.

“Como trabalhamos de maneira autônoma e não teríamos direito à licença maternidade, pensamos na possibilidade de as duas amamentarem, o que nos daria mais liberdade e nos deixaria mais sossegadas se uma das duas tivesse algum compromisso fora de casa”, conta Tiboni.

Depois de pesquisarem sobre o assunto na internet, encontraram a consultora internacional de lactação Kely Carvalho, que conhecia um protocolo que poderia ser utilizado para ajudar quem não gestou a produzir leite. “Ela conhecia o protocolo, mas ainda não tinha utilizado. Por isso, queria saber se a gente aceitava ser a primeira experiência e topamos”, recorda a mãe de Bernardo e Iolanda, que atualmente têm 4 anos.

Ela conta que começou o protocolo de medicação e extração de leite em junho e, em setembro, já começou a ter as primeiras gotas de leite. Quando os bebês nasceram, em outubro, ela estava produzindo uma quantidade grande, o que permitiu que os pequenos fossem nutridos pelas duas desde a sala de parto. Elas seguiram com a amamentação dos filhos até os dois anos de idade, conforme preconiza a Organização Mundial da Saúde (OMS). 

A lactação induzida é uma opção para todos os casos em que a pessoa quer amamentar, mas não consegue fazê-lo naturalmente porque não passou pela gestação ou já deu à luz há algum tempo. “Isso inclui os casos de adoção, de casais homoafetivos nos quais a mãe que não passou pela gravidez também quer participar do aleitamento, e de mulheres trans e travestis, além de mães que querem reintroduzir a amamentação. Só não é indicado para homens cis, pois seria necessário realizarmos um bloqueio da testosterona, o que é antiético”, diz a ginecologista e obstetra Ana Thais Vargas, que é especializada no assunto e faz parte da equipe da Lumos Cultural, formada por profissionais de saúde preparados para acolher famílias da gestação à infância.

A influenciadora digital Erika Fernandes, de 29 anos, também conseguiu amamentar o filho Noah, que hoje está com um ano. Ela é uma mulher trans que sempre quis ter um filho, mas sabia das suas dificuldades pelo fato de ter passado pela transição. Ela se casou com um homem trans e, depois de muita conversa, ele decidiu encarar a gestação. “Durante esse período comecei a me questionar sobre como meu bebê poderia ser amamentado, já que o pai tinha feito a mastectomia [retirada das mamas], processo que afeta os ductos de lactação”, conta a influenciadora. Ela começou a pesquisar sobre mulheres trans que amamentam e achou poucas informações. 

Algum tempo depois, ela conheceu a equipe da Lumos Cultural, que mostrou que esse era um sonho possível. Elas começaram o tratamento com o uso de hormônios e estimulação, simulando uma gestação em seu corpo cerca de 3 a 4 meses antes do parto e, para sua surpresa, após 20 dias, ela já começou a dar sinais de lactação.

“As especialistas disseram que meu desejo de amamentar era tão grande que ajudou a levar meu cérebro a estimular esse processo de indução e, por isso, liberei bastante ocitocina, um dos hormônios que ajudam na produção de leite. Perto do parto eu já estava jorrando o líquido e pude alimentar o Noah por três meses”, lembra. 

Como é o protocolo para produção de leite?

Kelly Carvalho, consultora de lactação, também trabalha na Lumos Cultural e explica que existem vários protocolos para esse processo na literatura, mas o mais utilizado é um de origem canadense. “Ele envolve o uso de hormônios, como o estrogênio e a progesterona, medicamentos fitoterápicos galactagogo, um remédio que não é fabricado para esse fim, mas que tem como efeito colateral a produção de leite. Além disso, é claro, uma bomba de sucção que estimula mecanicamente os seios e, assim, a produção de prolactina, hormônio que estimula a fabricação do líquido”, explica a especialista.

Carvalho aconselha que esse processo comece a ser feito antecipadamente, ou seja, pelo menos seis meses antes de o bebê nascer. “Até as oito semanas de vida, a criança tem mais chance de pegar o peito, pois tem uma função reflexa de sucção”, explica a consultora de amamentação.

Quando não dá para precisar quando esse bebê vai chegar, no caso das mães via adoção, é possível estimular essa mama, mas é mais difícil essa mãe conseguir amamentar exclusivamente, pois esse bebê já pode ter alguns meses de vida e estar usando bicos artificiais, como mamadeira e chupeta, que podem dificultar a aceitação do peito.

Em alguns casos, diz a especialista, há a necessidade de fazer a translactação, quando uma sonda com fórmula infantil é colocada na boca do bebê junto ao peito da mulher para que ele estimule essa mama e ela produza o leite.

Todo esse processo não oferece nenhum ônus à saúde da mãe ou do bebê, mas para que ela possa se submeter a ele, é preciso passar por uma criteriosa avaliação de saúde e acompanhamento médico. “Hoje temos mais de 150 pacientes e vemos que os riscos que eles podem enfrentar são os mesmos que qualquer mãe que amamenta, como mastite, fissuras, pouca produção de leite e ingurgitamento, quando a produção é exagerada”, diz a médica.

“E, assim como acontece com todo mundo, além de trabalhar na produção do líquido, eles também terão que passar pela adaptação para que o bebê aprenda a fazer a pega e sugar os mamilos adequadamente”, complementa Carvalho.