Amanhã Salvador recebe a audiência pública sobre o pedido para renovar a concessão da Ferrovia Centro-Atlântica (FCA), feito pela VLI, empresa que administra a estrutura férrea há quase 30 anos e quer mais três décadas à frente do negócio. Se você é do tipo que não gosta de spoilers, o recomendado é parar a leitura por aqui. Caso não tenha problemas com isso, o CORREIO antecipa quais serão os principais pedidos de representantes do setor produtivo no encontro que está marcado para acontecer das 9h às 13h, no Hotel Mercury da Pituba.Mais extensa malha ferroviária do país, com quase 8 mil km de trilhos, a FCA integra três regiões brasileiras – Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste – e está presente em mais de 250 municípios brasileiros. A estrutura que movimenta de produtos industrializados a insumos agrícolas e minerais deve ter receber um montante de investimentos de quase R$ 24 bilhões, de acordo com a proposta apresentada pela VLI, empresa que tem a Vale como principal acionista. O grande problema é que boa parte destes recursos devem ser aplicados fora da Bahia.
Para os quase 2 mil km que passam pelo estado, o futuro é incerto. E onde há certezas, caso dos 291 km que a empresa pretende devolver, as expectativas não são boas. Os temores são de que as medidas resultem em um cenário de “isolamento logístico” do estado em relação ao transporte ferroviário. Se hoje, o estado pena com uma ferrovia que se tornou defasada com o passar do tempo – com problemas de segurança, além de ter uma velocidade média de 11 km/h –, sem a estrutura, a situação pode ser ainda pior para a economia baiana.
Além disso, os quase 8 mil km de trilhos da FCA, incluindo-se aí os trechos em outros estados possuem uma bitola – distância entre trilhos – de um metro, enquanto estruturas mais modernas, como a da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), que está sendo implantada no estado, possuem uma distância maior, de 1,6 m. Em conversas sobre o assunto, a direção da empresa já demonstrou o interesse em manter inalteradas essas condições, uma vez que o aumento da bitola exigiria investimentos.A VLI informou, em nota enviada ontem, que “o contrato vigente aponta a descontinuidade do trecho (do Corredor Minas-Bahia) até 2026, com a manutenção da operação pela atual concessionária até a entrada de um novo operador. Ainda de acordo com a empresa, há quatro opções: manter a operação no formato atual, com a VLI; manter a operação com a VLI, mas em um formato diferente; licitação do trecho para um outro operador; chamamento público para um novo operador, dentro de um novo modelo, como o das autorizações. “Enquanto esses temas não forem definidos não haverá interrupção do serviço de transporte de carga”, garante a empresa.De acordo com uma fonte do governo federal que acompanha as negociações, a atual proposta apresentada pela empresa terá que ser reformulada, ou não haverá uma renovação antecipada do contrato de concessão. Na Casa Civil, onde o assunto vem sendo tratado, a possibilidade de devolução de alguns trechos, incluindo-se o que liga Alagoinhas a Senhor do Bonfim, é considerada aceitável, entretanto o que se diz é que a manutenção “em boas condições operacionais” do trecho entre Corinto (MG) e Campo Formoso (BA), passando por Brumado, é um dos pontos inegociáveis.
“Se fôssemos fazer uma licitação separada, faríamos de toda a FCA. Ou a VLI assume a requalificação do Corredor Minas-Bahia, ou não terá uma renovação antecipada. Ou vem uma proposta decente, ou faremos a licitação”, garante o integrante do governo ouvido pela reportagem. A preocupação do governo federal seria a de não perder a conexão entre o Nordeste e o Sudeste do país, realizada através da FCA.A audiência pública chegou a estar em risco de não acontecer, graças a uma liminar na Justiça Federal do Rio de Janeiro. Apenas às 17h41, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) conseguiu um mandado de segurança para garantir a realização do encontro. O pedido foi feito pela associação Logística Brasil, alegando que o processo administrativo segue em sigilo, não foram apresentados estudos de impacto conforme determina a lei e nem documentos que comprovem a vantajosidade da renovação.Em reanálise do caso, após manifestações da FCA e da ANTT, a juíza Geraldine Vital, mesma que concedeu a liminar, afirmou que “foi cumprida a exigência de publicidade”, por meio de divulgação de dados no site da agência reguladora, e que os estudos técnicos de vantajosidade foram demonstrados em audiência pública. Segundo ela, a análise final de vantajosidade só poderá ser consolidada após consulta pública.
A ausência de informações é uma queixa também aqui no estado. Antônio Carlos Tramm lembra que em 2020, quando era presidente da Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM), já cobrava da ANTT a divulgação de estudos e propostas relacionados à concessão para embasar as discussões sobre o assunto. “São cinco anos de audiência pública e nunca trouxeram essas informações. Ficamos com a empresa dizendo que os trechos são inviáveis, muitos outros dizendo que é viável, o que eu mesmo acredito, mas não temos os estudos”, lamenta. “Isso pode acabar prejudicar a Bahia”, avisa.Questão centralO futuro do Corredor Minas-Bahia deve ser mesmo o principal ponto de discussão na audiência pública. Para o empresário Carlos Henrique Passos, presidente da Federação das Indústrias do Estado da Bahia (Fieb), o mínimo aceitável é a garantia de melhorias para o trecho. “Se a VLI consegue fazer os trens, com a mesma bitola que temos aqui no estado andarem a 40 km/h em Minas, no Rio e em Goiás, o que nós exigimos é que pelo menos isso se repita aqui, que se realizem todas as melhorias necessárias”, defende.Segundo ele, a distância entre um “mínimo aceitável” e o “modelo ideal” é gigantesca. “Se fôssemos falar de ideal, seria uma ferrovia moderna, com 1,6 m de bitola, que possa se interligar à Fiol e a outras ferrovias, como a Transnordestina”, exemplifica.“Foram 28 anos de problemas de contratos, de regulação e outras questões que infelizmente aconteceram, e que não sei se é bom nos prendermos agora, mas que nos levaram a perdemos parte dos trechos e que afugentou muitas cargas também”, pondera. “É inegociável manter o corredor para viabilizarmos os poucos resistentes que ainda ficaram. Eles não mantiveram uma estrutura adequada e agora utilizam os poucos clientes para dizer que não tem viabilidade para manter a ferrovia”, lamenta.
Para o presidente da Fieb, o tráfego pesado de caminhões na BR-116, conhecida no estado como Rio-Bahia, justamente por fazer a ligação entre o Nordeste do Brasil e o Sudeste, é uma prova de que a carga entre as duas regiões é o que não falta. “A alegação de não ter carga na FCA é consequência da ação de uma operadora que usou um modelo que lhe permitiu a concentração dos investimentos em determinados trechos e até desativar o que não lhe interessava”, aponta.Carlos Henrique Passos acredita que é responsabilidade do governo, como poder concedente, viabilizar os recursos para a restauração do corredor ferroviário. “Não estamos pedindo uma ferrovia nova, onde seria necessário construir um novo leito, para alargar essa bilota. Queremos melhorias que deem segurança à operação. Quanto é, de onde vem o dinheiro, acredito que depende de uma solução federal”, acredita.O presidente da Fieb destaca ainda o potencial que a FCA tem de se integrar com a Fiol, mesmo com estruturas diferentes. “O cruzamento da Fiol com a FCA só soma alternativas, porque podemos pensar em movimentar cargas em direção a Salvador. Além de não atrapalhar, ainda pode ajudar. O ideal seria a mesma bitola, mas aí teríamos o impasse do investimento”, diz.Impacto nacionalApesar de grande parte do trecho ferroviário cujo futuro é incerto estar localizado na Bahia, a solução para o Corredor Minas-Bahia é de interesse nacional, acredita Paulo Villa, diretor executivo da Associação dos Usuários de Portos da Bahia (Usuport). “Já disse isso antes e reforço que para mim o Corredor Minas-Bahia é a nossa verdadeira ferrovia de integração nacional, porque liga o Sudeste e Nordeste”, avalia.Para Villa, é preciso buscar mais do que a manutenção do trecho. “Hoje já se tem boa parte da Ferrovia Transnordestina com 1,6 m de bitola, o corredor Fico-Fiol tem 1,6 m, no Sul e no Sudeste, as malhas têm esta mesma capacidade. Manter 1 m na FCA vai isolar a Bahia e Sergipe”, acredita. “Você não pode projetar a ferrovia fora de um sistema nacional”, diz.
Em 2021, quando participou do início das audiências públicas, o diretor da Usuport defendeu que a renovação fosse condicionada aos investimentos. Segundo ele, hoje a oposição da entidade permanece a mesma. “Quando se propôs a renovação de 100% da malha, em 2021, sem destinar nem um centavo para a Bahia, dissemos que era melhor uma licitação antes de findar o prazo de 2026. Nossa posição atual segue sendo esta”, afirma. “Não dá para tomar uma decisão que resolva apenas o problema da concessionária”, aponta.Para o consultor de infraestrutura Bernardo Figueiredo, a análise de viabilidade da ferrovia precisa levar em conta a possibilidade de transportar cargas gerais, e não apenas granéis minerais e agrícolas, como normalmente os estudos são feitos. Um dos responsáveis por fazer um estudo de viabilidade do transporte ferroviário na Bahia, através da Fundação Dom Cabral, Figueiredo mostrou que 90% do que passa pela Bahia, vindo do Sudeste para o Nordeste, são as chamadas cargas gerais. Tratam-se de produtos industrializados, alimentos e insumos petroquímicos. “Para se chegar à conclusão de que a FCA não tem viabilidade de movimentação de cargas na Bahia é preciso ignorar todo este potencial”, afirma.Segundo ele, todo este universo de cargas não estaria sendo movimentado pela ferrovia por conta das péssimas condições operacionais da mesma. “A principal razão pela qual essa carga não é cogitada na Bahia é que a ferrovia que atende a Bahia tem um padrão que não conversa com as ferrovias modernas. Essa carga que sai da Bahia e que chega vem basicamente da região Sudeste, onde a ferrovia é moderna, com performance boa. A que atende à Bahia é estreita, do século XIX”, analisa.Para ele, mesmo a velocidade média de 11 km/h, já considerada baixa para os padrões modernos, estaria sendo superestimada.Bernardo Figueiredo avalia ainda que a renovação antecipada não seria ruim apenas para a Bahia. Segundo ele, o que está sendo proposto pela VLI à ANTT é a manutenção da mesma estrutura atual pelos próximos 30 anos. “Vamos renovar para daqui a 30 anos termos o mesmo problema que temos hoje”, avisa.