É bom repetir: o pleito deste ano quebrou paradigmas, mostrou que o eleitor sabe votar, castigou quem refugava a ideia de comparecer ao confessionário e, sobretudo, elevou ao alto o conceito da cidadania ativa, que mostra o intenso desejo do cidadão de participar, de modo autônomo, do processo civilizatório. Dito assim, até parece que o eleitor tornou-se, de uma hora para outra, uma pessoa de alto nível cultural, capaz de entender os mecanismos da política. Nada disso.
Os maiores contingentes eleitorais do país continuam a trilhar as veredas da incultura política, sob a amargura de grandes necessidades e o sopro de ídolos que teimam em surfar nas ondas de um populismo enganador. Mas é fato que, mesmo sob a ampla teia de mistificação formada pela propaganda eleitoral, pessoas cultas e incultas se deram as mãos para promover o maior espetáculo cívico de nossa contemporaneidade. Vamos aos “pontos fora da curva” construídos pela vontade popular.
Primeiro, a quebra de paradigmas do marketing das eleições. A propaganda eleitoral, pela via clássica da TV e do rádio, já não elege um candidato. Tornou-se um som no vácuo. Não criou feed-back. Sem receptor, inexiste comunicação, apenas um processo unilateral de transmissão de mensagens. Os marqueteiros terão de reaprender seu ofício. Segundo, a força das redes sociais, não no sentido de puxar votos de um lado para outro, mas na estratégia de animar as militâncias e de usar versões para os fatos. Quem soube usar bem as ferramentas digitais ganhou pontos. Abriu-se, assim, a era da democracia digital, cujo impacto na produção de fake news certamente haverá de exigir controles mais apurados, dada a incapacidade dos nossos Tribunais em coibir as ilegalidades.
Na lista dos fenômenos inusitados, emerge forte mistura de ódio, indignação, revolta, revanche e até vingança, elementos que costumam aparecer em campanhas eleitorais, mas não com o alto teor explosivo como se vê nas ruas e nas redes sociais. Nunca se viu tanta raiva. Que traz em seu bojo a indignação contra a corrupção, a rejeição aos velhos costumes políticos e intensa vontade de punir o petismo. Na verdade, o sentimento antipetista foi subestimado, a denotar que viceja no meio social furor contra a semente do apartheid plantada no território durante todo o percurso do PT.
Outra surpresa foi a perda de força do dinheiro como alavanca eleitoral. Os caciques e dirigentes das maiores siglas, repartindo os recursos partidários entre os agraciados de sempre, principalmente aqueles que se perpetuaram nas máquinas, foram surpreendidos com derrotas. E assim, tradicionais figuras nos Estados saíram da galeria parlamentar. Um veto dado pelo eleitor de quase todos os rincões do país. Alguns ainda conseguiram sobreviver à pororoca, graças à extensão de seu mando.
O maior ícone da política, Lula, preso em Curitiba, conseguiu segurar bolsões do interior do Nordeste para seu indicado, Fernando Haddad, mas amarga a possibilidade de ver sua votação em campanhas passadas ser inferior à do capitão Bolsonaro. Mesmo assim, o PT conseguiu se posicionar como a primeira bancada da Câmara dos Deputados, de onde espera fazer oposição e voltar a ter sua estrela rodeada pelos entes da extremidade do arco ideológico.
O fato é que a política brasileira sobe degraus na escada civilizatória, significando a autonomia do eleitor, o estiolamento das direções partidárias, a necessidade de os partidos voltarem a vestir mantos ideológicos, maior racionalidade no processo de decisão popular, descoberta do voto como instrumento de mudança política. Inaugura-se, assim, a fase de autogestão eleitoral no país, representando um oceano de distância dos tempos em que os coronéis da Velha República (anos 30) entregavam aos eleitores a cédula eleitoral já preenchida e envelopada.
Os horizontes, como já frisamos mais de uma vez, são sombrios. Uma era de vacas magras nos espera. Não se espere do novo governante – mais provavelmente Jair Bolsonaro – o milagre da multiplicação dos pães. As demandas sociais não serão atendidas plenamente. Até porque é incompatível uma política de contenção de gastos – absolutamente indispensável para fazer o país andar – com o populismo redistributivista do primeiro ciclo Lula.
O pleito de 2018 figurará nos Anais da nossa história como aquele em que o poder centrípeto, de fora para dentro, mais oxigenou a democracia brasileira.
* Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato