Eu tenho tido uma vida simples, sem ousadias ou aventuras. Nunca pensei em pular de asa delta, sendo vascaíno nunca tive coragem de assistir a um Vasco x Flamengo no meio da torcida rubro-negra, ou qualquer outra loucura equivalente. Ou seja, longe de chegar à covardia, sempre me preservei e evitei as ditas emoções fortes. Talvez por isso eu já tenha atingido a oitava década, sem nunca ter quebrado um dedo sequer.
Todavia, certamente são poucas as pessoas que participaram dos primeiros dias de alguma ditadura militar. Pois eu participei. E não de uma, mas de duas. Sim, amigos, eu me fiz presente ao nascimento de duas ditaduras!
Em 31 de março de 1964, em Recife, vivi o clima e presenciei acontecimentos históricos que culminaram com a prisão de Miguel Arraes, então governador do Estado, e iniciaram a ditadura militar brasileira de 1964, já por mim descritos em artigo anterior publicado neste portal (“Não foi uma quarta-feira qualquer,” 27/11/2024). Aquilo já seria suficiente para ter histórias para contar aos meus netos. Mas, não. Quis o destino que eu estivesse na mesma situação, involuntariamente, é claro, doze anos depois, na Argentina.
Era março de 1976, eu e Celinha estávamos em uma excursão da Soletur, à época a mais importante agência de turismo brasileira, especializada no circuito Sul do Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai. Saindo de São Paulo, percorremos as capitais sulistas e cidades da Serra Gaúcha, até então com guia brasileiro. Cruzada a fronteira do Uruguai, nosso guia foi substituído por um uruguaio de nome Walter. Quase da nossa idade, que éramos notoriamente o casal mais jovem da excursão, ele naturalmente se identificou conosco e nos aproximamos. Nas nossas conversas diárias, ele deixou subtendido que tinha alguma participação clandestina no Movimento de Libertação Nacional – conhecido como Tupamaros, que era uma um grupo marxista-leninista de guerrilha urbana, no Uruguai.
Na noite de 23 de março de 1976, deixamos a capital uruguaia em um navio que nos levaria até Buenos Aires, através do rio da Prata, aonde chegaríamos ao amanhecer. E de fato chegamos. Chegamos, mas ficamos detidos no navio até o final da tarde daquele 24 de março, primeiro dia da ditadura que, depois de prender a presidenta Isabelita Peron, tornou-se a mais sanguinária ocorrida na América do Sul. Do porto até o hotel, fomos em ônibus guiados por escolta militar. Apesar de terem fechado as cortinas das janelas do veículo, nós conseguimos ver o aparato militar espalhado por todas as ruas, praças e esquinas. No hotel, fomos informados que o país estava em estado de sítio e não poderíamos sair dali, sob qualquer pretexto, sem alguma ordem superior. Nunca soubemos a quem pedir, nem quem daria a tal “ordem superior”. Bancos, comércio e restaurantes fechados, metrô e ônibus parados, realmente não teríamos mesmo o que fazer fora do hotel. No terceiro dia fomos liberados para sair do nosso isolamento e algumas lojas e restaurantes voltaram funcionar, mas só fariam transações usando pesos argentinos. Aquilo não mudou nada nossa vida, de vez que os bancos permaneciam fechados, e não tínhamos como fazer câmbio para adquirir moeda local. Já começava bater o desespero, quando a Soletur conseguiu autorização para irmos para Bariloche, onde as atividades cotidianas já estavam quase normalizadas.
No aeroporto, o guia Walter, recolheu passagens e documentos de todos nós para fazer check-in, e quando chegou ao balcão da companhia aérea, sob nossos olhares perplexos, foi cercado por um pelotão de militares fortemente armados. Em poucos minutos levaram o rapaz e um oficial dirigiu-se ao nosso grupo perguntando por mim. Lembrando a menção aos Tupamaros, temi pelo pior. O que haveriam de querer saber de mim? O tal oficial me tranquilizou ao estender um enorme envelope com todos os documentos dos colegas da excursão e dizer, em um portunhol da pior qualidade, que o guia havia pedido que eu terminasse o embarque do pessoal. Em Bariloche, acrescentou, haveria um agente da Soletur para nos receber. Naquele momento eu me transformei no despachante mais rápido e eficiente do mundo e em poucos minutos estávamos todos, silenciosos e preocupados, sentados na sala de embarque. Poucas horas depois pousamos em Bariloche e daí em diante a excursão foi concluída normalmente, sem sobressaltos.
Já estávamos no segundo dia em Bariloche quando, no jantar, fomos surpreendidos com a chegada do guia Walter. Ali, tomamos um vinho comemorando a sua libertação e soubemos que os militares que o prenderam não tinham nenhuma acusação contra ele e, na verdade, só estavam interessados na sua pasta de executivo onde transportava cerca de 100 mil dólares para fazer os pagamentos de hotéis, restaurantes e transportes da nossa excursão. Evidentemente sumiram com a tal pasta, e seu conteúdo, sem autorização judicial, sem fotos ou recibos.
E foi assim que participei, e testemunhei, do início de uma ditadura que se propunha a combater a corrupção na Argentina.
Rio, 2025