OPINIÃO

Li em algum lugar que a única coisa boa da velhice é sobrar tempo para recordar as coisas boas vividas. Eu acrescento: e deixar as más lembranças alimentarem o esquecimento na inevitável senilidade. Adentrando na nona década de vida, estou começando a praticar as duas coisas. E conto com a boa vontade dos meus dois ou três leitores para aceitarem, de vez em quando, os relatos que farei de algumas das minhas boas recordações.

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10 de janeiro de 1968, como engenheiro estagiário iniciei minha vida profissional na Petrobras.

21 de abril de 2006, já aposentado, estava no Marrocos.

Entre aquelas duas datas, 38 anos se passaram. As comunicações ganharam velocidade, as distâncias diminuíram e o mundo ficou pequeno. Tão pequeno que pude assistir em tempo real, mesmo estando, naquela segunda data, no saguão de um hotel na longínqua Marrakech, a transmissão televisiva que mostrava uma solenidade a bordo da plataforma P-50, na Bacia de Campos. Comemorava-se o atingimento da autossuficiência brasileira na produção de petróleo.

Durante aqueles 38 anos muitas coisas ocorreram. O Muro de Berlim caiu. No Brasil, a ditadura militar acabou e voltamos à democracia. Algumas guerras terminaram e outras começaram. A Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) foi criada e se consolidou. Os valores e princípios morais das sociedades organizadas se modificaram. Quase tudo mudou. Felizmente e afortunadamente, apenas quase e não tudo.

Assistindo àquela reportagem, tive a consciência de que uma das coisas imutáveis, entre a data da minha admissão na Petrobras e aquele Dia de Tiradentes, tinha sido a busca da tão sonhada autossuficiência brasileira na produção de petróleo.

Aqueles longos anos, cheios de desafios, não foram capazes de arrefecer o sonho de tornar o nosso país independente na produção de óleo e gás natural. Sonho de todas as pessoas que fizeram, e ainda fazem, a indústria petrolífera brasileira, na Petrobras ou fora dela. Como um vírus benéfico que se instalou na corrente sanguínea, a autossuficiência sempre foi um alvo claramente definido e solidamente contaminado e transmitido entre os petroleiros do Brasil.

Talvez ela pudesse ter sido atingida e comemorada antes, mas, como colocou Guimarães Rosa nas falas de Augusto Matraga, “tudo tem a sua hora e a sua vez”. E a hora foi aquela. A vez foi aquela.

Naqueles poucos minutos, impactado pela emoção, revi todo o meu passado profissional na Petrobras, e pude vislumbrar os rostos de muitos colegas e mestres que ficaram pelo caminho. Nas minhas retinas passaram pessoas que criaram e desenvolveram o sonho, mas que não tiveram a felicidade de viver aquele momento. Não os nominarei para evitar alguma injustiça provocada pela minha explicável perda de neurônios, mas eles – estejam onde estiverem – sabem em quem pensei naquele momento.

Concluído o noticiário, afastei-me dos meus familiares e pedi champanhe para uma comemoração solitária.

Não resisti à emoção e algumas lágrimas caíram na taça. Jamais esquecerei o sabor adulterado daquele champanhe. O gosto meio amargo, provocado por uma ou duas lágrimas da mais pura inveja por não estar na P-50, foi incapaz de ofuscar o sabor adocicado gerado por outras muitas outras lágrimas que contaminaram a bebida com a minha vaidade, orgulho e felicidade por ter, de alguma maneira e sem nenhuma modéstia, contribuído para que aquela solenidade existisse.

Aquele sabor, eu sei, jamais se repetirá.

Por: Alfeu Valença
Ex-presidente da Petrobrás e fundador da CONPET Consultoria e Engenharia de Petróleo.
Alfeu assina a coluna no site https://temporealrj.com/alfeu/