Foi no exato momento em que ouvi o porteiro do prédio comentar com o ascensorista. Já se passaram muitos anos, mas não esqueci de que foi ali que tive a clara noção e a consciência do meu absurdo preconceito literário. O cara falou pro outro, cheio de certezas, que não ficaria surpreso se no final do seriado o tal Diadorim se revelasse uma bichona apaixonada pelo vaqueiro Riobaldo. Pra mim foi duro demais ver toda a sensibilidade de Guimarães Rosa ser interpretada daquela forma grosseira.
Afinal, o escritor genial, embaixador, intelectual, tinha abandonado os bate-papos na Livraria José Olympio, na Rua do Ouvidor, e se embrenhado nos grotões e sertões mineiros para ouvir, ver e sentir os seus personagens e, em seguida, criar o melhor romance já escrito no Brasil, pra vir a TV Globo e fazer aquilo com Grande Sertão: Veredas? Até que a minissérie estava muito bem-feita, bem dirigida, com um elenco do melhor naipe, mas aquele romance não foi escrito para ser popularizado daquela maneira. Então a complexidade de Diadorim foi reduzida a uma homossexualidade não assumida?
A televisão transformou, para o povo em geral, claro que inconscientemente, uma história de amor, cheia de sensibilidade, de dúvidas, de rústicos carinhos, com enormes dubiedades, em um simples caso de
homoafetividade enrustida? Pelo menos, foi o que pude depreender da fala do porteiro. Aquilo me enraiveceu. Se for impossível colocar na tela, e transmitir ao povo, os sentimentos tão bem colocados no papel, melhor não o fazer, eu pensei. Era melhor mostrar de uma maneira simples e compreensível a história verídica de Lampião e Maria Bonita, do que vulgarizar uma ficção magistralmente elaborada.
Influenciado por uma professora de português, iniciei-me na literatura aos 15 anos e sempre li muito. Coisas boas e ruins, romances, contos, poesias e novelas, li de tudo. Quatro livros, todavia, me marcaram muito e fiquei cioso deles como se somente a mim pertencessem. Grande Sertão: Veredas foi um deles.
Há muitos anos, Hollywood já tinha destruído um dos meus romances preferidos, fazendo do Irmãos Karamazov, de Dostoievski, um filme medíocre, estrelado por notório canastrão: Yul Brinner. Aquilo me doeu muito, mas, pelo menos, naquela época, a penetração do filme foi muito pequena, quando comparado com o poder televisivo, e poucas pessoas tiveram a percepção errada de que os Karamazov eram apenas uma família de alcoólatras degenerados e, de certa maneira, a qualidade do livro foi preservada.
Tempos depois, mais uma vez a Globo tentou me tomar o privilégio de ser uma das poucas pessoas que leu, releu, e ficou encantado com A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Escrevi tentou porque, dessa vez, ela não conseguiu audiência. Não sei dizer por qual razão, mas a série não foi bem-sucedida. Desconfio que os meus maus olhados e pragas rogadas foram as causas principais do fracasso. Vibrei. Continuei a ser um privilegiado e o meu egoísmo cultural continuou ileso.
Por que estou escrevendo esse texto? Porque li em algum lugar que os “gênios” da televisão estariam tramando fazer uma adaptação para a telinha do meu quarto livro. Desta vez não ficarei quieto. Pegarei em armas, convocarei o espírito de Bin Laden, farei qualquer coisa, mas não deixarei violarem Ulisses, de James Joyce.
Por Alfeu Valença Alfeu Valença é ex-presidente da Petrobrás e fundador da CONPET – Consultoria e Engenharia de Petróleo.