Tenho certeza que alguém irá entender realmente do que falo aqui. Quando perdemos nossa mãe antes da hora que prevíamos, nos ressentimos dela ter furado a fila, principalmente quando vai na frente de irmãos mais velhos que permanecem. No meu caso ela não deixou recado, sem avisar, bateu a porta e se foi. São necessários meses para o fato em si se integrar à nossa vida, é preciso tempo para suportar o fato de que ela não vai mais voltar.
Comumente, esse momento tão pessoal, sofre interferência de rusgas familiares: acusações, cobranças e disputas. Acredito que como essas pessoas não conseguem chorar, agridem e ameaçam umas às outras, fugindo da dor comum. Muito triste. Mas, a verdade é que assim acontece nas melhores famílias.
Aos poucos é possível abstrair do seu corpo físico e garimpar as pedras preciosas que ela deixou. O seu modo de viver, alguma característica admirável e os incontáveis conselhos que nos acompanhou ao longo da vida. Nessa fase mais serena, a saudade nos traz sua presença. Em dia mais sensível, com os olhos fechados é possível sentir o cheiro da sua pele, a textura macia adquirida nos últimos anos da sua vida. Quando a sós na cozinha, em qualquer atividade doméstica, o silêncio nos envolve e podemos até mesmo conversar. Recebemos os conselhos para as dúvidas da vida, grandes ou pequenas.
O diálogo não se finaliza, permanece durante o tempo que durar. Esses sinais mais íntimos nos asseguram que apesar da sua morte física, nossa relação segue incólume. Digo mais, no meu caso, eu e ela continuamos a evoluir em nosso relacionamento. Hoje eu lhe dou um tratamento mais carinhoso do que no passado. Descobri algumas de suas razões que eu desconhecia e que me mostraram uma nova fase sua. Ambas crescemos espiritualmente. Alguns de nós cometeram erros como filhos, as vicissitudes da vida atropelaram a relação. Por essa razão, culpados, esses filhos não se sentem no direito de usufruir dessa fonte materna que não seca. Nem mesmo a saudade se permitem sentir.
Nunca é tarde para a relação com a mãe se refazer. Ou mesmo o primeiro momento de aproximação pode ocorrer na sua partida. O autor Fernando Pessoa nos garante que “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Sou grata a Deus por ter vivido essa chama derradeira. As últimas palavras que ouvi da minha mãe foram “Eu te quero tanto bem”. E eu disse: “É mesmo mamãe? Se a senhora não dissesse, eu nunca iria saber”. Ela respondeu: “Mas não é por causa de você, é por causa de minha neta…”. Esse foi nosso último diálogo, cheio de humor e digno de uma moldura.
Então, mesmo naquele momento em que os créditos do filme estão subindo na tela, ainda há tempo. Sempre há tempo. Usufrua cada segundo. Faça parte do filme da sua vida até as cenas finais. Não se assuste, se o final lhe surpreendeu, você não estava pronto ou desejava assistir mais. Nem mesmo tenha medo das luzes que se acendem, e do cinema vazio. Porque no fundo, no fundo, tudo está bem.
* Humbelina Gurgel de Mattos – Escritora macaense (E-mail: h_belina@hotmail.com)