OPINIÃO
Indicado por um amigo, ele entrou em nossa casa para trabalhar. E em nosso convívio para nos dar lições. Trabalhava como faxineiro, duas vezes por semana. Permanece em nossa memória para sempre.Idade? Desconhecida. Totalmente indefinida, poderia ter 50 ou 60 anos. Talvez mais, talvez menos. Não, menos não. A pele enrugada poderia ser interpretada como reflexo de uma vida difícil, mas, mais provavelmente, também registrava a passagem dos anos. Naturalidade? Ele dizia ser maranhense, mas ninguém em juízo perfeito, e conhecendo o Zé, poderia garantir a confiabilidade da afirmação. Se bem que o seu nome completo advoga em favor da veracidade da informação.Ah, José era o nome, mas ele sempre fez questão de se apresentar como Zé: “Zé Montiel, seu criado, às suas ordens”. O seu nome verdadeiro estava na carteira de identidade: José de Ribamar das Chagas. Implicando que “Chagas é nome de pobre” e “Ribamar é comum demais na minha terra”, substituiu os dois por Montiel, sobrenome de Sarita, cantora e atriz espanhola, que ele amava.Amar era o seu verbo mais usual, principalmente tratando-se de pessoas ligadas ao mundo artístico, ao rádio e à televisão. Não importava qual a estação; todas eram seguidos por ele, que sabia todas as programações, os horários, os apresentadores, os narradores, os atores, os diretores, tudo, enfim. Eu amo fulano, eu amo beltrano, amo fulaninha, era o seu refrão diário e constante.Em cada aposento em que entrava para exercer o seu mister, logo ligava um rádio ou aparelho de televisão, o que estivesse mais perto. Não perdia tempo olhando as imagens, bastava-lhe ouvir as vozes. Também não perdia um noticiário e decorava tudo o que ouvia.Assim, mantinha-se atualizadíssimo com os assuntos da política, permitindo-se opinar com muita propriedade. Com igual ênfase metia-se na vida pessoal de artistas e outros com vida pública, que acompanhava cotidianamente. “Gente! Vocês souberam que fulaninha saiu do armário? E que o marido tentou o suicídio? Ah, todo mundo está comentando”, isso ou algo parecido era o seu bom dia ao chegar para o trabalho.Quando o programa era sobre viagens, ele esquecia dos seus afazeres e ficava tão concentrado que os olhos brilhavam, e nós não tínhamos coragem de tirá-lo do transe. Aprendia tudo de outros países, cidades, costumes, pontos turísticos, comidas, apenas prestando muita atenção ao que via e ouvia. Quando ele sabia que algum conhecido ia viajar, não resistia e entrava na conversa, sugerindo restaurantes, museus e outras atrações. Aliás, no início, reclamávamos das suas constantes intromissões nas conversas alheias, porém, como ele o fazia com tanta graça, simpatia e conhecimento, terminou sendo aceito. Mais que aceito. Ele passou a ser constantemente convocado para opinar ou tirar dúvidas nas conversas familiares.
Com tudo isso, Zé, apesar da humilde profissão, desenvolveu uma erudição de dar inveja a muito doutor de anel no dedo. Com desenvolvida e inata dialética, ele conseguia facilmente convencer seus interlocutores com opiniões próprias e originais. Sim, porque ele não apenas ouvia os noticiários, ele os interpretava com lógica própria.Possuidor de ouvido absoluto e memória prodigiosa, identificava as vozes de cantores e cantoras, além de decorar rapidamente as letras das músicas populares e os nomes dos seus intérpretes e autores. Assoviava as melodias, bastando escutá-las uma ou duas vezes.Homossexual, defendia o movimento LBTG e, veementemente, protestava contra a expressão “opção sexual”. Ora, dizia, se ele já nascera assim, se sempre fora gay, se a natureza não lhe dera alternativa, como falar em opção? Morando há anos com o mesmo parceiro, costumava brincar dizendo que “Deus só inventou a Aids pra garantir a sua fidelidade conjugal”.Um dia, inesperadamente, veio se despedir. Dizendo que estava voltando pro Maranhão, não deu maiores explicações. Pedimos que, ao se fixar por lá, nos escrevesse contando as novidades e dando o novo endereço. Ele ruborizou um pouco e disse que telefonaria, mas não poderia escrever. E, com os olhos cheios de lágrimas, confessou ser analfabeto, o que nunca nos permitiu perceber.Não telefonou. Nunca mais soubemos dele, mas jamais o esqueceremos.
Por: Alfeu ValençaEx-presidente da Petrobrás e fundador da CONPET Consultoria e Engenharia de Petróleo.Alfeu assina a coluna no site https://temporealrj.com/alfeu/