OPINIÃO

Quando os noticiários mostram a diferença entre a minha qualidade de vida e a dos muito pobres moradores de bairros periféricos, confesso que sou assolado pelo remorso de poder usufruir de tantas tecnologias, confortos e facilidades que eles não têm.Com a evolução dos meios de comunicação, essa desigualdade social ficou mais escancarada. E isso aumenta minha angústia. Apesar de reconhecer não ter culpa direta por essa situação – salvo ter votado errado algumas vezes (talvez mais do que o aceitável) – tenho procurado reduzir esses sentimentos ajudando anonimamente, dentro das minhas possibilidades financeiras, algumas instituições e pessoas do meu convívio que sobrevivem com dificuldades econômicas.Há pouco estava me lembrando de que, além dessas ajudas mais substanciais, durante a pandemia da Covid-19, tomei uma atitude simbólica, pois pelos baixos valores envolvidos era até ridícula, mas que, intimamente, me fez muito bem. Decidi pagar uma gorjeta adicional aos entregadores dos aplicativos, em dinheiro vivo, complementando aquelas já embutidas nos valores das compras e pagas aos aplicativos. Afinal, eu pensei, aqueles rapazes estavam nas ruas tentando sobreviver, mas, incoerentemente, na verdade, estavam se arriscando, se expondo ao vírus para permitir o meu conforto e segurança durante o isolamento compulsório.Escrevi aplicativos? Ah, os aplicativos! Foi a grande herança que a pandemia me proporcionou. Hoje eu me pergunto por que precisei ficar isolado do mundo por quase dois anos para aceitar esse símbolo da vida moderna. Pergunto apesar de saber a resposta: o natural receio dos idosos com as modernas tecnologias. O estranho é que eu sempre procurei estar bem-informado, ou “antenado” como dizem atualmente, mas no tocante aos aplicativos de compras ou não, fiquei relutante por muito tempo. Perdi tempo!Alerto que, até começar a vida pandêmica, para mim esses tais aplicativos eram coisas misteriosas e sabia apenas o que estava nos dicionários: a-pli-ca-ti-vo (s.m.) programa de computador projetado para auxiliar a execução de uma tarefa específica (p. ex., processamento de textos, cálculos etc.). Naquele tempo, no máximo, eu conseguia, com muito esforço mental, chamar um táxi 99 ou um Uber.Hoje sou um entusiasta e acho, sem modéstia, que me tornei um exímio usuário de todos os tipos de aplicativos. Com muito gosto, admito, virei escravo deles. Estou tão íntimo dos danadinhos que já me permito tratá-los coloquialmente como a-pê-pês. O meu celular, comprado para ser telefone, já tem uma infinidade de ícones de aplicativos e poucas vezes é usado naquela função inicial.Vinhos, comidas, roupas, remédios, detergentes, livros… Como viver sem ouvir o porteiro do prédio anunciar a presença de um motoqueiro trazendo o lanche, o jantar, a cerveja gelada, o cartucho da impressora, ou o Engov na manhã seguinte? O tal “streaming” me fez sumir com as centenas de CDs acumulados anos a fio. Os DVDs vão no mesmo caminho e, se ainda não foram descartados, agradeçam ao mais puro romantismo que me impede de abandonar velhos companheiros.

Agências bancárias, pra quê? Pagar, receber, transferir dinheiro? Aplicativo. Agência da Receita Federal pra justificar descontos médicos no Imposto de Renda, nunca mais: Aplicativo. Reembolso de plano de saúde: Aplicativo. Título de eleitor, carteira de motorista, SUS, INSS, Registrato? Nem questiono: Aplicativo neles!Mas, nem tudo são flores. Viver nesse novo estilo, bem mais caseiro, é muito tranquilo, gostoso e compatível com as minhas oito décadas. Entretanto, além da bondade de estimular um ócio salutar, origina alguns problemas. Seria pedir demais se isso não acontecesse. Só benesses seria utópico demais. Porém, uma dúvida se apresenta. Como, atualmente, definir o que é um problema para mim? Agora, com os aplicativos, vivo numa comodidade tão grande, mas tão grande, que fiquei preguiçoso ao ponto de já estar classificando como problema tudo aquilo que me obriga a fugir da rotina, a fazer algum esforço físico e – absurdo! – até pensar.Por exemplo, um “enorme” problema que surgiu na minha vida foi a indisponibilidade de cédulas de pequeno valor para dar gorjetas aos entregadores das encomendas feitas pelos aplicativos. Quando comecei a usar os benditos Apps, me achando muito prevenido, fiz um estoque de notas de R$ 5 e R$ 10 para durar uns cem anos. Ledo engano. Em pouco mais de um mês, os motoqueiros já tinham levado tudo.Criativo, abordei os guardadores de carros da região que prontamente aceitaram a minha proposta: trocar minhas notas de R$ 100 por R$ 95 em notas de R$ 5 e R$ 10 que eles recebiam dos clientes. Nós, eu e os entregadores do iFood, UberEats, Cornershop, Loggi, Rappi, farmácias, lojas, padarias, Amazon, supermercados, restaurantes etc., ficamos muito gratos a eles.Todavia, aquelas minhas transações em dinheiro vivo, que certamente estavam influenciando negativamente no comportamento do mui nobre e sensível mercado financeiro, logo foram interrompidas quando – maravilha! – descobri um Banco24Horas que opera com notas de 2, 5 e 10 reais. Isso me trouxe um grande alívio, uma vez que já estava percebendo alguns olhares desconfiados e, cedo ou tarde, alguém iria me denunciar, como um velho careca traficando drogas com os “flanelinhas” da Barra da Tijuca.Foi assim que abandonei as transações com os meus improvisados operadores financeiros, mas, estou convicto, jamais farei o mesmo com os meus inseparáveis a-pê-pês.

Por: Alfeu ValençaEx-presidente da Petrobrás e fundador da CONPET Consultoria e Engenharia de Petróleo.Alfeu assina a coluna no site https://temporealrj.com/alfeu/