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As cidades, os desvios e as errâncias

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Os Hebreus do Antigo Testamento não separavam a vida espiritual da experiência no mundo. Assim como os gregos, a existência cotidiana era preenchida pelas vagas, ondas e turbilhões do inesperado. Deus estava sempre presente. Mas, havia uma singularidade na relação dos Hebreus do Antigo Testamento em relação aos gregos: os primeiros se consideravam como errantes, desenraizados. Mesmo Yaveh, do Antigo Testamento, era o deus da errância. Yaveh não era localizável num lugar fixo, num lugar determinado. Ele viajava, por todos os lados, com o seu povo.

O sociólogo e músico Sennet afirmará que Yahvé era um deus do tempo. Não era um deus do espaço. Era um deus que prometia àqueles que lhe seguiam, dizendo que tudo o que pudessem viver em suas jornadas errantes tinha um senso divino, um senso espiritual.
A viagem era a experiência de se ultrapassar. Ultrapassar a própria existência. A viagem ganha um senso divino, um sentido de transcender a própria existência. Assim a dimensão divina ou cósmica da viagem produz a ultrapassagem da existência terrestre numa relação direta com o mundo superior dos céus. Donde decorre um nomadismo da existência através da experiência da viagem: se fazer e se desfazer perpetuamente.

Vê-se que a relação da existência com a viagem, com os trajetos, se dá numa relação contrapontística para a escrita da existência de cada pessoa. No entanto, os projetos de vida se encapsulam e, muitas vezes, se manicomializam em caminhos que são predefinidos por outras pessoas, instituições e ainda pela lógica neoliberal da produção a todo e qualquer custo. O custo, em muitos exemplos, é a vida das pessoas. Hoje, mais do que nunca, cada um é valorizado pelo que tem. Nem os títulos de pós-graduação num mestrado ou doutorado será a garantia da conquista de algum espaço no mercado de trabalho. E assim inúmeras “viagens” são idealizadas para que uma multidão de pessoas acredite e se ocupe com elas.

Aqueles que buscam ser errantes, saindo desta lógica, muitas vezes são vistos como imprestáveis dentro de um mundo que valoriza a eficiência, o conhecimento técnico que deve andar alinhado com as metas, produtividades, planos que, nas suas diversas manifestações delirantes, não são cumpridos. Aqueles que buscam caminhar por outros caminhos, pelas brechas da lógica ultraprodutiva capitalista, podem se deparar com outros valores. Valores que não se aprisionam à servidão de ter que ser o que os outros dizem, valores de vida que inclinam ao cultivo da sua própria vida na relação com os outros e com o mundo.

Não precisar ser como todo mundo, não precisar ter que pensar como todo mundo, não precisar falar sobre aquilo que todo mundo fala, não precisar se vestir como todo mundo se veste, não se preocupar com os carros do ano, não se preocupar em ter que assistir os mesmos filmes que todo mundo assiste, não precisar ter que ler os mesmos noticiários que só diminuem a nossa potência de existir com suas notícias que só falam de corrupção, violências de todos os tipos, cultivando os afetos de temor, raiva da política e dos políticos (mesmo sabendo que inúmeros deles são desprezíveis pelo uso daquilo que é da coisa pública para os seus vícios privados!).

Traçar desvios desta lógica dos valores individualistas e egoístas será buscar se interessar pelas histórias das pessoas, conhecendo seus mundos próprios, conhecendo o mundo ao vivo, o mundo vivo que está diante de nós. Será sair da anestesia de uma vida já prontinha pra ser usada e que não foi inventada e criada por nós. Será inventar o mundo com os outros, construindo novos caminhos em meio aos caminhos que estão aí! Será construir a cidade e ser construído por ela, pois, faremos parte da sua história. Será poder ser errante e inventar novos caminhos em meio aos caminhos já preestabelecidos. Será ter a coragem de viver uma vida sendo parte dela e não vivendo à parte! Será poder sair do lugar de consumidor de ideias, de telejornais, de sites, de produtos, saindo do lugar de consumidor de pessoas só se interessando por elas quando elas mesmas são convenientes para nossos interesses. Será poder ser cidadão, se ocupando com as questões da cidade, será poder ser gente que se inclina aos outros e às tantas gentes.

Abraço,

Paulo de Tarso