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Quando um amigo se torna um irmão

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Para escrever sobre a minha vida com Miguel não precisei esmiuçar a memória, nem sequer fazer cócegas nos neurônios adormecidos.

Lembro bem do ano em que nos deparamos pela primeira vez, afinal foi naquele distante 1970 que nasceu meu primogênito, e o Brasil foi tricampeão mundial de futebol. Portanto, três acontecimentos inolvidáveis: Feuzito, Copa e Miguelito.

Vocês certamente conhecem pessoas que não se expõem, pouco falam, mas observam tudo com ar de quem não quer querendo, não conhecem? Ali estava um. Dentre os cinco engenheiros estagiários que se apresentaram na Petrobras, em Aracaju, se quatro eram falantes e tentavam se sobressair perante os coordenadores do estágio, era aquele último quem se destacava pelo seu jeito arredio e indisfarçada timidez. Magro, baixo, calado, só respondia ao que lhe era perguntado. Mas, naquelas respostas, os observadores mais argutos percebiam que estavam diante uma inteligência positivamente diferenciada.

Afinal, aquela cabeça avantajada tinha tamanho suficiente abrigar um cérebro privilegiado capaz de fazer cálculos e armazenar números — coisas de engenheiros — exibia um enorme cabedal de conhecimentos gerais: literatura, botânica, zoologia, história, geografia e filosofia eram coisas do seu domínio, sem nunca cair na tentação do esnobismo intelectual. Daí, algum tempo depois, mais como homenagem e admiração do que como ironia, ganhou um apelido que não prosperou: Big Head. Aos poucos, voltou a ser Miguel para os menos íntimos, para os próximos ficou Miguelito, diminutivo cheio de carinho.

A vida prega peças e muitas coisas acontecem sem explicações, justificando o dito popular “amigos são melhores do que parentes, porque temos o direito da escolha”. Pois bem, para contrariar a regra, não foi o nosso caso. Não escolhemos nada. A amizade veio naturalmente, aos poucos, assim como o amor chega inexplicavelmente. À primeira vista, nada tínhamos em comum. Eu bebia, ele era quase abstêmio. Eu gostava de praticar esportes, ele era sedentário. Como estudante sempre fui medíocre, ele um notório “CDF”. Eu já cheguei na Petrobras casado e ele parecia apreciar a solteirice e, pior que tudo, ele sempre foi flamenguista, eu um radical vascaíno.

Talvez fruto das monótonas viagens diárias entre Aracaju e o campo de petróleo, em Carmópolis, as conversas foram apontando pontos de convergência que foram nos aproximando. Origens igualmente interioranas, colégios e faculdades públicas, admiração pelos mesmos autores literários, músicas e diretores de cinema foram, acredito, fatores que ajudaram a cristalização da nossa convivência. A lealdade mútua e cooperação nos trabalhos árduos, solitários e cheios de pioneirismos nas plataformas marítimas transformou a convivência em uma forte, sincera e inquebrantável amizade.

Foi daí que aquele sujeito convenientemente tímido se aproximou da minha casa e conquistou a minha prima cunhada tão querida. O carinha foi tão sutil que nem tive como questionar o romance. Primeiro, porque eu não tinha pátrio poder sobre ela, e depois porque a minha mulher, Celinha, e a mãe dela, D. Valda, já morriam de amores por Miguelito — só não elogiando as barras de doce de buriti que ele trazia, de vez em quando, da sua cidade natal, em Floriano – PI. Elogiar doce de buriti seria demais, muito demais, eu o provocava. Já as garrafas de Cajuína até hoje são, como sempre foram, muito bem-vindas e disputadas.

Casado com Suzana, a convivência aumentou naturalmente e até sócios nós fomos em duas malogradas experiências empresariais. Compramos um sítio próximo à cidade de Salgado – SE, onde colhemos muitas frutas em cajueiros, mangueiras, abacateiros e goiabeiras preexistentes, além de macaxeiras, abóboras e pimentões que plantamos. Algum tempo depois, com problemas financeiros, sugeri que ele comprasse a minha parte e a resposta foi muito bonita: “Venderemos tudo. O sítio só tem graça com você. E mais, você é quem está necessitando do dinheiro, fique com tudo. Quando puder, algum dia, você paga a minha parte”, e assim foi feito. Grande Miguel! Sempre desprendido.

Daquela experiência sobrou para o meu concunhado, e depois compadre, o gosto pela agricultura, sobejamente comprovado ao encontrarmos no piso do seu carro um pé de feijão com alguns centímetros de altura. Ou seja, ele gostava do agro, mas não de limpar os tapetes daquele Volks TL marrom.

A segunda sociedade nossa também fracassou, novamente por minha culpa. Um edifício de escritórios estava sendo construído no centro de Aracaju, pertinho da tradicional loja Huteba, com magnífica vista para o rio Sergipe e a Barra dos Coqueiro. Sem vacilar, compramos ainda na planta duas salas vizinhas, cheios vontade de adentrar na especulação imobiliária. Logo em seguida, fui inesperadamente transferido para Vitória – ES e precisei de recursos financeiros para complementar a compra de um apartamento naquela cidade. Mais uma vez Miguel falou “é você quem está necessitando da grana”, e vendemos as nossas salas.

Esse é o Miguel, que hoje, padecendo de uma cruel e injusta Alzheimer, ainda me coloca em suas fantasias e devaneios, valorizando e perenizando a nossa amizade. Isso me comove e inebria tanto que, por vezes, fico a acreditar na ingratidão dos sergipanos que nunca nos agradeceram por termos, juntos e quixotescamente, como ele diz, libertado Sergipe do domínio político e territorial da Bahia.

Miguel Alves do Nascimento, o irmão que a vida me deu, impedindo que, após perder todos aqueles de sangue, eu me sentisse um órfão filho único.

Por: Alfeu Valença – Original do Portal Tempo Real

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